Durante minha estadia no Japão, por volta de 1997, tive uma das experiências gastronômicas mais marcantes da minha vida. Em uma noite típica, fui com amigos japoneses a um izakaya, que é um tipo de bar japonês tradicional, muito frequentado por trabalhadores após o expediente para relaxar, conversar e compartilhar porções de comidas variadas com bebidas. Ao lado da minha esposa, que sempre topa essas aventuras comigo, decidimos experimentar algo realmente diferente: fígado de boi Wagyu cru e basashi, a famosa carne de cavalo crua.
Na época, eu já estava aberto a provar sabores novos, mas confesso que a ideia de comer carne de cavalo ou fígado cru me deixou um pouco apreensivo. No entanto, bastou a primeira mordida para que toda hesitação desaparecesse. Ambos os pratos estavam deliciosos, cada um com características únicas e surpreendentes.
Basashi: tradição do interior do Japão
O basashi (馬刺し), também conhecido como sakuraniku (carne de cerejeira, por conta da cor avermelhada), é um prato tradicional japonês feito com carne de cavalo crua, cortada em fatias finas, muito semelhante ao sashimi. Essa iguaria é especialmente comum nas regiões do interior do Japão, como Kumamoto, Nagano e Fukushima, onde o consumo de carne de cavalo tem raízes históricas.
O costume de consumir carne de cavalo no Japão remonta ao período Edo (1603–1868), mas foi após a era Meiji (1868–1912), com a abertura do Japão ao Ocidente, que o consumo se intensificou. A carne passou a ser valorizada por suas qualidades nutricionais, por ser rica em proteínas, com baixo teor de gordura e colesterol.
Hoje, o basashi ainda é considerado uma iguaria, servido principalmente em restaurantes especializados ou izakayas mais tradicionais. Ele é normalmente acompanhado de shoyu, alho fatiado, gengibre, cebolinha e wasabi, compondo um sabor intenso e refinado. Na minha experiência, a textura me lembrou um salame leve, e os temperos realçaram seu sabor de maneira impressionante.
Fígado de boi Wagyu: delicadeza que derrete na boca
O outro prato da noite foi fígado de boi Wagyu cru, um corte extremamente delicado e apreciado por conhecedores da culinária japonesa. O Wagyu, conhecido mundialmente por ser uma das carnes mais macias e saborosas do mundo, também oferece cortes que vão além do famoso bife marmorizado. O fígado, por exemplo, é consumido cru (em locais autorizados e com rígido controle sanitário) ou levemente grelhado.
Naquela noite, experimentei o fígado cru com um pouco de shoyu, alho e wasabi. O sabor era suave, com um toque adocicado natural, e a textura… indescritível. Derretia na boca como um pedaço de manteiga fria. É uma daquelas sensações gastronômicas que você não esquece jamais. Minha esposa, que também provou, adorou — e até hoje comentamos sobre como foi especial aquela noite.
Comida exótica ou parte da cultura?
Para quem não está familiarizado com a culinária japonesa além do sushi e do lámen, pratos como basashi ou fígado cru podem parecer extremos. Mas no Japão, o respeito pela origem dos ingredientes, o cuidado no preparo e a busca pelo sabor natural são valores essenciais.
Essas iguarias fazem parte de uma tradição culinária que valoriza o frescor e a textura dos alimentos. Comer carne crua, por exemplo, não é apenas uma questão de gosto, mas uma forma de apreciar o alimento em seu estado mais puro, respeitando sua qualidade e origem. No caso do basashi, por exemplo, a carne é servida em temperaturas específicas e com cortes precisos, exigindo habilidade e conhecimento do chef.
Curiosidades e cuidados
Basashi é considerado seguro quando servido em locais especializados. A carne é mantida em congelamento rigoroso para eliminar possíveis parasitas antes de ser servida crua.
Em muitos restaurantes, ele é servido como entrada, acompanhado de saquê ou shochu.
Nem todos os japoneses consomem carne de cavalo: apesar de tradicional em algumas regiões, ela não é popular no país todo. Há até debates éticos sobre o consumo, assim como ocorre com foie gras ou carne de cachorro em outras culturas.
O consumo de fígado cru foi restrito em 2012 pelo governo japonês devido a riscos sanitários, sendo hoje menos comum ou exigindo preparo específico (como escaldado).
Uma experiência que levarei para sempre
Relembrar essa noite no izakaya me traz à tona a beleza de se abrir ao novo. A culinária japonesa vai muito além do sushi e do tempurá — ela é um universo riquíssimo de sabores, texturas e histórias. Provar basashi e fígado de Wagyu cru não foi apenas uma aventura gastronômica, mas uma verdadeira imersão cultural.
Se um dia tiver a oportunidade, recomendo: vá a um izakaya, sente-se ao lado dos locais, peça algo fora do comum e experimente. Você pode se surpreender com os sabores — e com as histórias que eles contam.